Da França a Istambul: o jogo e seus personagens
- Alexandre Patz Hein
- 10 de mai. de 2021
- 8 min de leitura
Final inédita e inglesa na Champions League. Manchester City, pela primeira vez em sua história, vai disputar a final do certame, enfrentará o “londrino” Chelsea, que já pleiteou o título por duas vezes, em 2008 e 2012, vencendo em uma oportunidade. A final está marcada para o dia 29 de maio, em Istambul, na Turquia.
Pela terceira vez teremos uma final inglesa na maior competição do continente europeu. As três finais foram disputadas no séc. XXI. Na primeira, em 2008, o rival vermelho de Manchester, o United, venceu o Chelsea nas penalidades. E na segunda, em 2019, o torcedor inglês que foi as ruas comemorar, foi o de Liverpool, que levou a melhor sobre o Tottenham. O fato curioso da final de 2021, é que Manchester City e Chelsea nunca se enfrentaram pelo torneio continental.

Tour Europeu da Taça: última parada será na Turquia.
Fonte: Twitter UEFA Champions League
Os “Citizens”, treinados por Pep Guardiola, que depois de 10 anos de ressaca europeia volta a disputar o troféu, são considerados favoritos. Pep tem em seu currículo duas “orelhudas”, dupla conquistada ainda com o Barcelona. O City, na sua campanha, eliminou os alemães Borussia Mönchengladbach e Borussia Dortmund e o francês Paris Saint-German. Já os “Blues”, são comandados pelo técnico alemão Thomas Tuchel, que em 2020 perdeu a final para o Bayern de Munique. Na ocasião, Thomas treinava o PSG. Tuchel é considerado um dos treinadores da nova geração alemã que vem tendo cada vez mais espaço em grandes clubes europeus. O Chelsea teve pelo seu caminho o Atletico de Madri, o Porto e o Real Madrid. As duas equipes inglesas foram amplamente superiores nos seus confrontos até aqui. A final inglesa não é um daqueles “acasos” que o “mata-mata” pode proporcionar.
No texto de hoje buscamos outro foco. Dentre os aspectos que envolvem o jogo de futebol (tático, fisico, torcida, imprensa), por vezes esquecemos que o jogo também é constituído por pessoas, por seres humanos, e estes, junto dos seus clubes nos contam histórias. Poderíamos lembrar do passado difícil dos clubes lutando nas divisões inferiores da Inglaterra, onde ambos subiram juntos para a Premier League em 1989 (o City cairia novamente até a terceira divisão, voltando a PL em 2003) ou as suas grandes conquistas nacionais e internacionais (do lado do Chelsea, é claro), ou até mesmo, a entrada do dinheiro “estrangeiro” nos cofres ingleses nos anos recentes. Porém, excepcionalmente hoje, este espaço será reservado aos protagonistas do espetáculo: os atletas.
Uma final é constituída de inúmeros personagens. Não será diferente em Istambul. Personagens como o belga Kevin De Bruyne que encanta o mundo com seu ótimo desempenho na temporada e deve estar, merecidamente, entre os três melhores do prêmio da FIFA. Ou como a dupla nascida no ano de 1999, Kai Havertz, contratado junto ao Bayer Leverkusen, e Mason Mount, das categorias de base do clube, que lideram os “Blues” nesta campanha. Também das categorias de base, Phil Phoden e Reece James, jovens de City e Chelsea, respectivamente, que se enfrentam desde a adolescência (foto abaixo) e hoje, como peças importantes nas suas equipes profissionais, chegam no maior palco do futebol europeu.

Phoden x James se enfrentando em 2014, no Sub-14.
Fonte: Twitter pessoal de Reece James.
Temos também um duelo “a brasileira” entre os personagens da final. Thiago Silva versus Fernandinho. Ambos estavam na seleção brasileira de 2014 e até hoje são lembrados como figuras centrais daquele desastre. Atletas “cancelados” em terras tupiniquins. Os dois são considerados peças fundamentais pelos seus treinadores e por vezes são vistos usando a braçadeira de captain das suas equipes. Ainda são ótimos jogadores. Outro personagem “brasileiro” deste confronto é Jorginho. Um “italiano de Santa Catarina”. Volante de passe refinado e controle de jogo, o brasileiro naturalizado italiano surgiu para o futebol no Verona, e, hoje é o cérebro da equipe de Tuchel. São muitos personagens, poderia escrever textos sobre cada um, mas o meu foco está nos três “franceses”: N’Golo Kanté, Riyad Mahrez e Édouard Mendy.
O que estes atletas têm em comum? Além de terem nascido na França (hoje somente Kanté defende a seleção francesa), os três demoraram a brilhar no cenário profissional. Cada um com suas particularidades, mas as histórias de vida são muito parecidas e se conectam em algum ponto dessa linha de tempo.
Começo por Édouard Mendy. O francês que hoje defende Senegal, terra natal da sua mãe, esteve perto de “largar a bola”. Após cair consecutivamente da terceira para a quarta e da quarta para a quinta divisão nacional francesa, o goleiro, na época com 22 anos, ficou sem clube por um ano. Abandonado pelo seu empresário, voltou para sua cidade natal, Le Havre, onde mantinha a forma treinando sozinho. Durante este tempo, recebeu uma espécie de auxílio-desemprego do governo francês. Mendy ainda batalharia por alguns anos até se tornar goleiro titular do Reims, da segunda divisão francesa, na temporada de 2017/18. O goleiro foi eleito o melhor jogador da sua posição no campeonato e ajudou o Reims a subir para a primeira divisão. Talvez nunca tenha passado pela cabeça de Mendy que, cinco anos depois de estar desempregado, seria o goleiro mais caro a ser vendido da Ligue 1. Nem que, em seu primeiro ano de Chelsea, se firmaria como titular, desbancando o goleiro mais caro da história, o espanhol Kepa, e, com diversos clean sheets*, ajudaria na retomada da boa campanha no campeonato inglês e levaria seu time a final da Champions League. De Le Havre à Istambul.
*Expressão utilizada na Inglaterra para a equipe que não sofre gols em uma partida.

Mendy comemorando o título da 2ª Divisão Francesa ao lado da sua mãe.
Fonte: Instagram pessoal de Mendy
Riyad Mahrez nasceu e cresceu em Sarcelles na França, mas atualmente, assim como Mendy, defende outra seleção, a Argélia, país de origem de seu pai. O pai de Mahrez foi jogador profissional na Argélia e em clubes menores da França. Porém, veio a falecer quando seu filho tinha apenas 15 anos. Fato este, que serviu de motivação para Mahrez buscar o sonho do seu pai. Mas não foi nada fácil. O aparecimento tardio no futebol também se fez presente na vida do veloz ponta direito argelino. Aos 18 anos, não era uma promessa de um grande clube francês, jogava no Quimper da quarta divisão francesa. Mostrava muita habilidade na perna esquerda. Sua “perna esquerda” o levaria até Lens (clube da segunda divisão na época) para fazer um teste. Porém, não passou. Motivo? Muito franzino. Terminado o ano no Quimper, alguns clubes, como o PSG e o Olympique de Marselha, procuraram o jogador para contratá-lo para o elenco Sub-20. No entanto, Mahrez optou pela proposta do Le Havre, da segunda divisão. Ali teria mais minutos em campo, pensou o jogador. E deu certo. Dois anos e meio depois, uma proposta de 500 mil libras do Leicester para jogar na segunda divisão da Inglaterra é feita ao jogador. O franzino argelino jogaria no futebol mais disputado fisicamente do mundo. Ainda que na “segundona”, é verdade.
A visibilidade do futebol inglês e as suas atuações levam Mahrez a seleção da Argélia. A trajetória do Leicester nos anos seguintes é digna de cinema. Acesso a Premier League e no segundo ano na primeira divisão, em meio aos gigantes ingleses, conseguem o impensável para uma equipe deste porte: o título da PL. Talvez nos próximos 100 anos de futebol inglês não veremos algo similar ao ano de 2016. Mahrez foi fundamental na campanha do título dos “Foxes” e seu desempenho chamou a atenção de Pep Guardiola. 60 milhões de libras nos cofres do Leicester foram suficientes para que a transferência fosse concretizada. Anos depois, Mahrez faz 3 gols nas semifinais da Champions League e carimba seu passaporte argelino para a final na Turquia. De Sarcelles à Istambul.

Riyad Mahrez atuando pelo Quimper, França.
Fonte: www.premierleaguebrasil.com.br/leicester-mahrez-jogador/
E por fim, N’Golo Kanté. Não podemos mensurar, comparar ou “pesar” histórias de vida, mas se pudéssemos, na minha balança, a história de Kanté seria a mais “pesada”. Nascido em Paris, filho de imigrantes africanos de Mali, Kanté teve uma infância muito difícil. Ainda criança, percorria quilômetros nas ruas parisienses recolhendo lixo para ajudar a família. Em 1998, enquanto os franceses comemoravam o título da Copa do Mundo, com apenas sete anos de idade, “catava” os dejetos produzidos pelos festejos. Mal sabiam os torcedores que, ali entre eles, estava o futuro volante titular dos “Les Blues”. Seu pai faleceu quando tinha onze anos e até os dezoito anos jogava na Academia de Futebol de Suren, um clube amador localizado nos subúrbios de Paris.
Junto ao futebol amador, nunca deixou de estudar. Kanté é Bacharel em Contabilidade. Em 2010, aos dezenove ano de idade, a ida para o Bolougne, da quarta divisão francesa, “encerrou” a breve carreira do futuro contador. Chegava a chance para tentar algo maior no futebol. Apenas na sua terceira temporada no clube, Kante foi titular e ajudou o Bolougne a subir para a terceira divisão francesa. Após o acesso, o Caen, clube da segunda divisão, contratou o pequeno volante para ser pilar fundamental na conquista da vaga para a Ligue 1. Uma temporada na elite francesa foi o necessário para o Leicester, equipe de Riyad Mahrez, comprar Kanté por 8 milhões de euros.
Nos anos seguintes, Kanté fez história. É campeão da Premier League pelo Leicester (2016) e Chelsea (2017), campeão da Copa do Mundo da Rússia pela França (2018), campeão da Europa League pelo Chelsea (2019) e pode levantar a taça mais cobiçada dos clubes europeus no final deste mês. Kanté há alguns anos é o melhor volante do mundo. Sua entrega e humildade dentro de campo elevam qualquer elenco a um patamar diferente. Na Copa da Rússia, por exemplo, foi o maior recuperador de bolas e o 4º jogador que mais cobriu distâncias em campo até as semifinais. Porém, dois dos atletas que estavam a frente de Kanté em "distância percorrida" haviam disputado duas prorrogações. Quase duas partidas a mais que o francês. E o melhor, Kanté faz todo este "trabalho sujo" com um grande sorriso no rosto, como se ainda estivesse jogando com seus amigos em Suren.
Fora das quatro linhas, N’Golo Kanté é admirado por todos. São inúmeras histórias que mostram a simplicidade do jogador. Às vezes, Kanté ia aos treinamentos do Leicester correndo, fato que gerava a “ira” de Claudio Ranieri, seu treinador. Hoje milionário, Kanté ainda dirige seu Mini-Cooper, um carro “popular” se comparado aos luxuosos veículos de seus companheiros. Contam torcedores do Chelsea, que ao encontrar o jogador em uma estação de Londres, Kanté tomaria um trem para a França, mas perdeu o horário, convidaram o atleta para ir à casa de um deles e o jogador aceitou! Kanté jogou horas de vídeo-game e jantou junto dos torcedores. Algo raro nesse meio. Na final da Copa do Mundo em Moscow, ainda dentro de campo, os jogadores comemoravam e tiravam as famosas “selfies” com o troféu de campeão. Kanté, não. O jogador, segundo os jornais franceses, estava envergonhado para pedir aos companheiros alguns segundos com o troféu para ter uma recordação pessoal. Foto tirada e sorriso no rosto. Segue o mesmo menino de Paris, seguirá também em Istambul.

N’Golo Kanté sorrindo com o troféu de Campeão do Mundo.
Fonte: Instagram de N’Golo Kanté.
Além do campo tático e do estudo do jogo, que são muito importantes, as vezes esquecemos que cada atleta carrega nas suas costas um passado, uma história. Essas histórias jogam o jogo junto dos atletas. Cada erro e acerto são influenciados por elas. Nem sempre essas histórias são sofridas, mas independente do conteúdo de cada uma delas, uma coisa é certa: seja de Le Havre, Sarcelles, Paris ou qualquer outra cidade do mundo, essas histórias se encontrarão em Istambul.
*MUDANÇA DE LOCAL: A UEFA talvez altere o local da final para um estádio na Inglaterra. Dois clubes locais, a vacinação avançada dos ingleses e as restrições de vôos para a Turquia são motivos para se ter mais torcedores presentes nas arquibancadas na final. Aguardamos os próximos dias.
** Imagem de capa - Fonte: Twitter UEFA Champions League
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